A Receita Federal tem encaminhado um número cada vez maior de comunicados ao Ministério Público Federal para que o órgão investigue executivos e sócios de empresas por possível crime contra a ordem tributária. Em 2018, segundo estudo do Instituto de Ética Concorrencial (ETCO) com a Ernst & Young, o Fisco encaminhou 2.442 alertas ao MPF, o que representou 29,48% das fiscalizações realizadas no período. O percentual foi o maior desde 2011. Já segundo a Receita, entre novembro de 2018 e o mesmo período de 2019, foram cerca de sete mil representações.
A partir desses comunicados, denominados de representações fiscais para fins penais, o Ministério Público avalia se abre inquérito contra o contribuinte e eventual denúncia ao Judiciário por crime contra ordem tributária ou se arquiva a representação.
No Plano anual de fiscalização do ano passado, a Receita afirmava que em diversas fiscalizações encerradas em 2018 foram identificadas provas de ocorrência, em tese, de crime contra a ordem tributária. As representações ocorrem a partir das fiscalizações promovidas pelos auditores, que são enviadas ao MP após constituído o auto de infração. Os dado fechados de 2019 ainda não foram divulgados.
Os crimes contra a ordem tributária estão previstos na Lei nº 8.137, de 1990. O não pagamento de tributo com omissão de informação, fraude, falsificações ou não fornecimento de nota fiscal são situações que caracterizam o crime.
Há duas possíveis explicações para o aumento das representações fiscais para fins penais segundo o estudo “Os Desafios do contencioso tributário no Brasil”. Do ponto de vista do Fisco, o uso da tecnologia e novas estratégias de fiscalização teriam possibilitado a descoberta de mais crimes fiscais.
Já o contribuinte, entende que a Receita estaria usando o instrumento para buscar aumento de arrecadação. Nesse sentido, além das representações fiscais para fins penais há outras ações da Receita, como priorizar a fiscalização de grandes contribuintes, e a criação de uma lista pública de representações encaminhadas ao MP. A medida foi autorizada em 2018 por portaria.
No site da Receita, há uma listagem das representações enviadas ao MPF entre 14 de novembro de 2018 e 30 de novembro de 2019. Entre as empresas que lidam com as representações estão grandes companhias abertas, como Petrobras, Santander, Itaucard, Azul Linhas Aéreas e a Companhia Brasileira de Distribuição (Grupo Pão de Açúcar).
“Vivemos em um mundo onde os grandes contribuintes são tratados como criminosos, quando não são”, afirma o presidente do ETCO, Edson Vismona. Segundo Vismona, basta a opinião do fiscal para a representação para fins penais ser feita. “Virou um procedimento comum e não pode ser assim”, diz, se referindo aos quase 30% de autuações com representações fiscais em 2018.
As representações com fins penais diferem do compartilhamento de dados obtidos pela Receita com o MP sem autorização judicial. No caso do compartilhamento, que já foi julgado e autorizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministério Público pede dados à Receita para endossar uma investigação. Na representação fiscal o caminho é inverso, nela o auditor fiscal indica que pode haver crime em uma situação de não pagamento de impostos.
“As representações da Receita são superrelevantes”, afirma a coordenadora da Câmara Criminal do Ministério Público Federal, Luiza Frischeisen. De acordo com ela, são dados úteis para o MPF. Apesar disso, afirma, muitos casos são arquivados por se tratarem de contrabando e descaminho em valor inferior a R$ 20 mil. Abaixo desse montante, o Judiciário aplica o princípio da insignificância.
Apesar do incômodo ou constrangimento, as representações se tornaram habituais para as grandes empresas, segundo advogados. “Verificando os julgamentos do Carf, praticamente todas as autuações de operações de ágio têm multa agravada. A prática da Receita já faz um tempo”, afirma a advogada Ana Paula Lui Barreto, sócia da área Tributária do Mattos Filho. Multas agravadas, portanto, mais altas, são aplicadas quando há suspeita de fraude.
O advogado criminalista e professor de direito da FGV-SP, Davi Tangerino afirma que atualmente o direito penal é usado de forma explícita como pressão para o recolhimento tributário. “Não é para isso que serve o direito penal”, afirma. Segundo ele, há dois movimentos recentes da Receita: o avanço sobre pessoas físicas, buscando-se sócios, diretores e até integrantes do conselho de administração como responsáveis pelos pagamentos e uma maior consideração de atos como fraudulentos.
Para o professor, uma minoria realmente comete crimes, mas na maioria dos casos há apenas a discordância dos contribuintes com os pressupostos do Fisco. Isso aconteceria em casos como a incidência de contribuição previdenciária sobre programa de participação em lucros (PLR), por exemplo. A Receita considera, em muitas situações, o PLR pago pelas empresas como um salário “disfarçado”.
Segundo o advogado Rogério Taffarello, sócio de direito penal empresarial do Mattos Filho, apesar de a representação não tratar de provas, mas de indícios de crimes e ser uma comunicação de fato potencialmente criminal, na prática as autoridades não entendem as diferenças que há na lei tributária. Enquanto na esfera criminal há a presunção de inocência, na área tributária, indícios servem para enquadrar a conduta em infração, diz o advogado.
Entre as empresas citadas, apenas Petrobras e Itaú se manifestaram. A Petrobras diz que cumpre suas obrigações fiscais e o caso listado pela Receita está em discussão na Justiça. O Itaú Unibanco diz não ter relação com eventual conduta criminal citada pela Receita, que se refere a contrabando com veículo arrendado pelo banco.
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