Avaliar a capacidade analítica na resolução de problemas e medir habilidades que diplomas não certificam é o que vêm motivando diversas empresas a incluírem desafios técnicos e estudos de caso nos processos seletivos. Pesquisa realizada pela plataforma de análise de dados Qlik, em parceria com o The Data Literacy Project e que ouviu 604 líderes de empresas dos EUA, Europa e Ásia, mostrou que quase 60% da empresas utilizam estudo de caso como o principal indicador da alfabetização de dados de um candidato. Em contrapartida, apenas 18% consideraram bacharelado, mestrado ou doutorado em ciência de dados como indicador de que o candidato possui o conhecimento esperado.
No Brasil, as empresas estão dispensando a exigência de diplomas para várias posições, principalmente aquelas ligadas à tecnologia, e a resolução de estudos casos se mostra presente em processos para vagas de analista à média gerência. “Fazemos esse exercício de negócios para entender como a pessoa resolveria um problema parecido ao que temos no nosso dia a dia”, diz Pamela Chusyd, head de recrutamento do Uber no Brasil.
No Uber, o “exercício de negócios” é geralmente a terceira etapa do processo seletivo que pode durar três meses no total. Após a triagem dos currículos, há uma entrevista com um gestor da área e, se a vaga exigir habilidades específicas, a resolução on-line de um desafio técnico. Superada essas fases, o candidato recebe dados e números de uma “problemática real” vivenciada recentemente pela empresa. “Queremos ver qual estratégia ela traz à mesa e contratamos quem pensa diferente do que nós”, afirma Pamela. A complexidade do problema proposto - que implica em maior dedicação por parte do candidato - depende da área e vaga. O Uber pode conceder até duas semanas para o preparo.
No caso da engenheira Aline Borges, contratada como desenvolvedora mobile no Uber em fevereiro de 2019, o exercício de negócios em sua seleção demandou dois finais de semana de estudo. “Foi um desafio de dificuldade média para alta com várias etapas de algoritmos, exigindo conceitos que formam a base para o desenvolvedor, mas que não utilizo todos os dias. Então, me forcei a estudar de novo, a escrever códigos e fazer simulados com meu marido, que também é desenvolvedor”, afirma.
À essa altura, ela já havia passado por uma entrevista com um recrutador, que a abordou pelo LinkedIn, e feito um desafio técnico de programação. No dia do exercício, Aline se reuniu por conferência com um engenheiro do Uber, que explicou a ela o problema e ficou aberto para fornecer dicas ou discutir possíveis caminhos. “Fui perguntada sobre por que estava pensando daquele jeito e não de outro. É preciso argumentar, ouvir e repensar questionamentos”, diz.
A premissa de dar maior valor à construção conjunta do caso, do que aquilo que o candidato propõe sozinho, também direciona parte do processo seletivo no Nubank. Alexandre Cisneros, 26, trabalhava em uma startup do Recife, na área de automação, quando se candidatou a uma vaga para engenheiro de software da fintech. Após enviar o seu currículo, e passar por essa triagem, recebeu uma mensagem. “Quando se sentir à vontade para realizar o próximo desafio, avise e nós enviamos. Aqui estão as competências - técnicas e comportamentais - que iremos avaliar e as tecnologias que usamos”, conta.
No geral, o Nubank fornece uma semana para o preparo dessa etapa e estima que os candidatos precisem dedicar até seis horas de estudo. “Aproveitei essa oportunidade para estudar uma linguagem de programação que não tinha domínio, li os materiais de referência que o próprio Nubank enviou e fiz desafios pela internet”, diz. Ele admite que sua dedicação pode ter sido excessiva, mas queria garantir a presença na próxima etapa. E garantiu. “Neste desafio remoto, avaliamos como ele aplica conhecimento prévio ao problema sugerido e buscamos entender o raciocínio durante a resolução”, diz Rodrigo Gaião, gerente de recrutamento do Nubank.
A nova etapa de avaliação de Cisneros foi uma extensão do que resolveu remotamente. O que estava em jogo agora era sua capacidade de resolver um problema ao lado de engenheiros, em uma simulação de um dia de trabalho. “Essa troca com quem já está dentro é uma forma dos gestores analisarem o envolvimento dos candidatos, perceberem quem se destaca e trocarem experiências. Se não for aprovado, há também um legado de aprendizado para o candidato”, diz Hugo Kovac, CFO da plataforma 99 jobs. Cisneros não conseguiu resolver o desafio proposto desta vez, mas foi aprovado para a fase final de entrevistas por qualidades que apresentou ao longo das etapas. Entre o dia que se candidatou à vaga, em uma feira de recrutamento no Recife, e a data que desembarcou em São Paulo, como contratado, foram dois meses. É esse o tempo médio do processo no Nubank.
Garantir que o funcionário se mantenha engajado e disponível em processos que possam ter várias etapas, ao longo de semanas, é uma preocupação do QuintoAndar. Por essa razão, a startup que atua no aluguel de imóveis, já avisa desde o primeiro contato com o candidato qual é o passo a passo. Há doze fluxos diferentes para o recrutamento em várias áreas, com geralmente sete etapas no total. Parte dos processos conta com a resolução de um estudo de caso. “Fornecemos uma base da dados - com números similares à realidade do nosso negócio - e pedimos aos candidatos sugestões de melhorias e novas abordagens. Queremos ver como ele pensa o que não é central”, diz Heloisa Vieira, head de atração de talentos.
Entre os cenários à espera de uma nova abordagem, estão viabilizar um contrato entre locatário e inquilino com menos esforço, a criação de rotas mais interessantes para o corretor e a construção de uma agenda de horários com proprietários. O case pode ser entregue em qualquer formato (PDF, PPT, vídeo) e o tempo para preparo, somente nessa etapa, costuma ser de sete dias - podendo ser prorrogado, caso o candidato solicite.
Para algumas vagas, o caso é apresentado pelo candidato a um ou mais gestores. É aqui que entra a questão da análise de raciocínio, do julgamento dos profissionais na hora de tomar decisão e da interpretação dos dados. A cientista da computação Vivian Saddi, aprovada há cinco meses como Product Manager, diz que nunca havia construído um case em um processo seletivo. “Foi um momento que me forçou a sair da zona de conforto”. Na apresentação, Vivian diz que tinha em mente que “suas soluções possivelmente não seriam as melhores”, mas trabalhou para construir um projeto que mostrasse sua capacidade de diagnosticar problemas e apresentar o framework para resolvê-los.
A Intuit, empresa americana de sistemas de gestão financeira, presente no Brasil há quatro anos, demanda a resolução de estudo de caso em vagas para analista júnior até a presidência. Todos se apresentam para uma espécie de “banca” - chamada internamente de “painel” - formada por gestores de várias áreas. A comunicação, portanto, apesar de não ser o mais importante, tem peso significativo, segundo Flávia Molina, head de RH da Intuit no Brasil e México.
Quando passou pelo próprio processo de contratação, no início deste ano, Flávia criou um projeto de marketing com estratégias para fortalecer a marca Intuit no país. “A forma como você trabalha no business case te ajuda a prosseguir no onboarding depois, pois você conhece melhor as pessoas com quem irá trabalhar e o que poderá usar no dia a dia de sua nova rotina”.
Caso o candidato seja reprovado, as empresas ouvidas pela reportagem afirmam que não aplicam, posteriormente, as melhorias e estratégias propostas. “Deixamos claro que o contexto fornecido não é 100% real e que não usaremos aquele conhecimento. É importante dizer porque existe até um certo receio dos candidatos sobre ‘trabalhar de graça’ para a empresa”, diz Heloisa Vieira.
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