Equívocos interpretativos relacionados às disposições sancionatórias previstas na nova Lei das Estatais vêm causando diversos prejuízos à Administração Pública e aos particulares que com ela contratam. A incorreta extensão da penalidade prevista na Lei 8.666/93, para as sanções advindas de contratos com as Estatais, estão sendo objeto de diversos embates em processos administrativos e judiciais.
A Lei das Estatais (Lei n. 13.303/2016) foi criada por determinação do art. 173, §1º, da Constituição da República, que determinou a criação de uma lei federal que dispusesse sobre o estatuto jurídico das empresas estatais, bem como criasse normas específicas de licitações e gestão dos contratos firmados por essas entidades.
Contudo, até a vigência da Lei das Estatais (Lei n. 13.303/2016), todas as empresas estatais se vinculavam às disposições de licitações e gestão de contratos previstas pela Lei Federal n. 8.666/1993, respeitadas particularidades inerentes aos próprios regulamentos de compras, como permitido por entendimentos jurisprudenciais aplicáveis.
Dentre essas disposições da Lei nº 8.666/1993 aplicáveis aos contratos firmados pelas empresas estatais, antes da vigência da Lei n. 13.303/2016, estavam aquelas referentes às sanções aplicáveis ao contratado, previstas no art. 87, in verbis:
“Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I – advertência;
II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a
Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Persiste, até o momento, uma discussão jurídica sobre a extensão dos efeitos da penalidade de suspensão do direito de contratar prevista no art. 87, III, da Lei n. 8.666/1993, com a penalidade de declaração de inidoneidade, a que se refere o art. 87, IV, da Lei n. 8.666/1993, especialmente diante da omissão existente nos referidos dispositivos normativos.
Apenas para fins de contextualização, o Tribunal de Contas da União tem o entendimento pacífico no sentido de que a penalidade de suspensão do direito de contratar, prevista no art. 87, III, da Lei n. 8.666/1993 deve se restringir apenas à própria entidade pública que aplicou a sanção. Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça tem o posicionamento, muito criticado pela doutrina administrativista, no sentido de que a penalidade de suspensão do direito de contratar, tipificada no art. 87, III, da Lei n. 8.666/1993, aplica-se a toda a Administração Pública.
Todavia, com a vigência da Lei das Estatais, essa discussão se tornou inócua perante os contratos firmados por empresas estatais. Isto, porque a disposição normativa, aplicável (art. 83, III, da Lei n. 13.303/2016) aos contratos firmados por empresas estatais, é clara no sentido de que a aplicação da penalidade de suspensão do direito de contratar estende apenas ao âmbito da própria “entidade sancionadora”:
“Art. 83. Pela inexecução total ou parcial do contrato a empresa pública ou a sociedade de economia mista poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
[…]
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora, por prazo não superior a 2 (dois) anos.
Desse modo, a legislação específica das estatais previu que a suspensão temporária e o impedimento serão restritos às licitações e aos contratos com a “entidade sancionadora”, afastando completamente o debate sobre o âmbito de aplicação, e permitindo que uma empresa, mesmo impedida por uma entidade, continue contratando com o resto da Administração Pública.
Entretanto, ocorre que, erroneamente, vários órgãos e entidades da Administração Pública vem estendendo os efeitos da suspensão, inclusive quando aplicadas por empresas estatais, contrariando expressamente o princípio da legalidade, e inabilitando empresas que participam de licitações, sob o fundamento de que a penalidade aplicada por uma estatal irradia efeitos para toda a Administração Pública, assim como acontece na nos casos em que se incide a Lei n. 8.666/1993, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Essa conduta viola flagrantemente o princípio da legalidade estrita, já que amplia efeitos de penalidades contra expressa disposição legal, bem como afeta o direito de ampla participação nos procedimentos licitatórios, o que prejudica a eficiência das contratações públicas, indo de encontro ao princípio da vantajosidade.
Nesse contexto, sabe-se que existe uma premissa hermenêutica, positivada no art. 2º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657/1942), no sentido de que norma especial sempre prevalece sobre norma geral.
Ou seja, considerando que a Lei Federal n. 13.303/2016 estabelece normas específicas às empresas estatais, frente às normas da Lei n. 8.666/1993, é inegável que as disposições da Lei n. 8.666/1993 não poderiam ser aplicadas.
Indo além, conforme bem pontua Edgar Guimarães e José Anacleto Abduch Santos, “diante da omissão da Lei das Estatais, é de se sustentar que não há aplicação subsidiária à Lei n. 8.666/93” (Lei das Estatais. Belo Horizonte: Editora Fórum: 2017, p. 123). Esses mesmos autores também destacam que a sanção de suspensão temporária do direito de contratar, aplicada por uma empresa estatal na vigência da Lei n. 13.303/2016, “retira a possibilidade de participar de licitação e de contratar, projetando seus efeitos apenas na empresa pública ou sociedade de economia mista que aplicou esta penalidade” (op cit, p. 275).
Em suma, jamais se poderia cogitar de extensão do âmbito de incidência previsto na Lei 8.666/1993 para a Lei 13.303/2016, já que isso seria fazer prevalecer norma geral sobre norma especial, além da necessária observância da máxima sempre indicada pelo Superior Tribunal de Justiça – ‘inclusio unius alterius exclusio’ – em que se ensina que, onde não se inclui, é porque o legislador desejou excluir, não devendo o interprete adicionar.
Nesse ângulo, por mais que a supramencionada Lei 13.303/16 seja bastante recente, a jurisprudência já se manifestou no sentido da impossibilidade de tal aplicação:
“REPRESENTAÇÃO COM PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. INABILITAÇÃO INDEVIDA POR INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DOS EFEITOS DA PENALIDADE DO ART. 7º DA LEI 10.520/2010. CONTRATO EM EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE LESÃO AO INTERESSE PÚBLICO. INDEFERIMENTO DA CAUTELAR. PROCEDÊNCIA PARCIAL. CIÊNCIA.
[…]
9.4.2. a interpretação dada ao art. 38, inciso II, da Lei 13.303/2016 está equivocada, uma vez que o impedimento de participar de licitações em razão desse dispositivo se refere tão somente a sanções aplicadas pela própria entidade, e não a sanções aplicadas por outra empresa pública ou sociedade de economia mista;
(Tribunal de Contas da União, Acórdão 269/2019 – TCU – RP: 00037320192, Relator: BRUNO DANTAS, Data de Julgamento: 30/04/2019, Plenário)
“APELAÇÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO MEDIATO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÃO E IMPEDIMENTO DE CONTRATAR. ALCANCE DA PENALIDADE RESTRITO AO ÂMBITO DA ENTIDADE SANCIONADORA.
Suspensão imposta por empresa pública federal em decorrência de descumprimento de contrato firmado à luz da Lei 8.666/93. Penalização com base no art. 83, III, da Lei 13.303/16.
O Estatuto das Estatais delimita o âmbito da sanção à entidade sancionadora. A nova legislação reduziu expressamente o alcance da suspensão temporária ao ente sancionador. Reconhecimento do direito à participação nos certames municipais. Aplicação retroativa da lei benéfica. Interpretação do art. 5º, XL, da Constituição Federal. Precedentes. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO.” (TJ-SP – AC: 10368115020188260053 SP 1036811-50.2018.8.26.0053, Relator: José Maria Câmara Junior, Data de Julgamento: 27/03/2019, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 28/03/2019)
Tribunal de Justiça do Distrito Federal
“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. ENTIDADE LICITANTE. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CONCORRENTE. INABILITAÇÃO. FUNDAMENTO. LICITANTE APENADA COM SUSPENSÃO DO DIREITO DE LICITAR E CONTRATAR. PENALIDADE APLICADA POR EMPRESA PÚBLICA FEDERAL. SANÇÃO APLICADA COM LASTRO NA LEI 13.303/2016. ABRANGÊNCIA DO IMPEDIMENTO. ALCANCE RESTRITO À ENTIDADE SANCIONADORA. PREVISÃO LEGAL EXPRESSA (LEI 13.303/2016, ART. 83, III). AMPLIAÇÃO DA RESTRIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO COM OUTROS ÓRGÃOS E ENTIDADES. ÓBICE AFASTADO. SEGURANÇA CONCEDIDA. REEXAME NECESSÁRIO. SUBMISSÃO. SENTENÇA MANTIDA.
1. A Lei n. 13.303/2016, dispondo sobre o estatuto jurídico das empresas estatais, estabelecera novo marco na regulação dos procedimentos licitatórios e contratações realizados por empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, excepcionando, em diversos aspectos, o regime genérico estabelecido na Lei Geral de Licitações (Lei n. 8.666/1993), e, no que se refere ao regime sancionatório, excluíra a previsão da aplicação da penalidade de declaração de inidoneidade e expressamente consignara que a sanção de suspensão do direito de licitar e impedimento de contratar aplicada tem alcance restrito ao âmbito da própria entidade sancionadora (Lei n. 13.303/2016, art. 83).
2. Aplicada, por empresa estatal, penalidade de suspensão do direito de licitar e impedimento de contratar com lastro no disposto no art. 83, III, da Lei n. 13.303/2016, não subsiste impedimento para que a contratada-sancionada participe de processos licitatórios ou contrate com outros órgãos e entidades da Administração Pública, posto que o dispositivo legal expressamente limitara os efeitos da sanção suspensiva ao âmbito da própria entidade sancionadora, resultando dessa apreensão a impossibilidade de a penalidade ser içada como fundamento exclusivo para inabilitação da penalizada em procedimento licitatório promovido por entidade administrativa diversa.
2. Remessa de Ofício conhecida e desprovida. Unânime. (TJ-DF 07053411320188070018 DF 0705341-13.2018.8.07.0018, Relator: TEÓFILO CAETANO, Data de Julgamento: 27/02/2019, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 11/03/2019 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Portanto, sanadas as dúvidas que podem surgir sobre o âmbito de aplicação da sanção das estatais, é importante promover ampla conscientização dos agentes públicos responsáveis pelas licitações, em todos os âmbitos da federação, com objetivo de garantir o escorreito cumprimento da lei das estatais, resguardando a competitividade e a eficiência dos procedimentos licitatórios em todo o país.
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