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57 condenados usaram decretos sobre armas para tentar reduzir penas no RJ; 80% conseguiram

Os novos decretos que alteram as regras sobre o uso de armas de fogo e munições foram usados pela defesa de criminosos condenados e presos no Rio de Janeiro para beneficiá-los na Justiça.

Levantamento do G1 identificou 57 decisões da 2ª instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), assinadas entre 11 de maio e 20 de dezembro de 2019 (quando começou o recesso do Judiciário), nas quais decretos presidenciais foram citados como argumentos para justificar a revisão de condenações.

Entenda o que está valendo sobre posse e porte de armas Na maioria dos casos, as decisões conjuntas de desembargadores tornaram mais brandas as penas aplicadas por juízes de 1ª instância a pessoas flagradas com armas de fogo sem autorização para tê-las (posse) ou carregá-las fora de casa (porte).

Ao analisar cada uma das decisões, a equipe de reportagem constatou que em 46 casos – ou 80% das ações – os réus que recorreram foram beneficiados com revisões das penas por porte ou posse ilegal de armas de fogo.

Desses 46 casos, há 11 que envolvem pessoas que foram condenadas também por outros crimes:

tráfico de armas ou drogas (8 casos); assalto (1); homicídio (1); sequestro (1). Os 35 casos restantes são de pessoas condenadas apenas por porte ou posse de arma de fogo.

Em nota enviada ao G1, a Secretaria-Geral da Presidência da República informou que "os atos normativos assinados pelo Presidente da República são analisados previamente pelas áreas competentes do governo". E acrescentou que, "quanto às decisões judiciais, cumprir o que nelas é determinado é uma imposição da ordem constitucional e da democracia".

O TJRJ, também em nota, comunicou que ainda não dispunha do "recorte" apresentado nas estatísticas do G1. A equipe de reportagem solicitou uma entrevista com o presidente do tribunal sobre o tema. O TJRJ informou que o presidente não poderia "se manifestar em relação a assunto que pode vir a ser tema de decisão judicial".

Também questionado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública não enviou resposta até a publicação da reportagem.

O que mudou com os decretos

Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou oito decretos que alteraram a regulamentação do Estatuto do Desarmamento, nome dado à Lei 10.826, na qual estão estabelecidas as regras sobre posse, porte e comércio de armas no Brasil. A primeira norma assinada pelo presidente foi há 1 ano, no dia 15 de janeiro.

Algumas mudanças possibilitaram que armas que antes eram de uso restrito das forças de segurança – como pistola calibre 9 milímetros e ponto 40 – passassem a ser de uso permitido. A pena para quem é flagrado com arma de uso restrito é maior.

Dessa forma, pessoas que respondiam por porte ou posse ilegal de arma de uso restrito puderam pedir à Justiça para responder por porte ou posse de arma de uso permitido. Antes, a pena mínima de prisão por porte ilegal de arma ou munição de uso restrito, por exemplo, variava de 3 anos a 6 anos. Após os decretos, criminosos passaram a responder a artigo que prevê pena de 2 a 4 anos de prisão.

Como a lei deve retroagir para beneficiar o réu, esse entendimento prevaleceu no conjunto decisões de segunda instância analisado pelo G1. Houve, também, casos em que a Justiça rejeitou os recursos. Um dos motivos citados pelos desembargadores para manter a condenação era a constatação por peritos de que a arma apreendida estava com a numeração raspada.

De modo geral, nos processos checados, os desembargadores do TJ definiram que as condutas atribuídas aos acusados deveriam ser "desclassificadas". Isso significa que os magistrados relatores dos processos aceitaram as alegações das defesas e decidiram, por exemplo, mudar o cálculo das penas aplicadas em 1ª instância.

Na maioria dos casos em que os acusados foram beneficiados, as defesas citaram o decreto presidencial 9.847, publicado em 25 de junho do ano passado.

Veja casos em que os réus se beneficiaram:

Apontado como chefe de milícia consegue revisão de pena PM flagrado com 3,5 mil munições tem pena reduzida em 5 anos Alvo de ação contra tráfico de armas tem pena revista Acusado de integrar milícia pode ter processo suspenso Sequestrador Rogerinho do Zinco tem pena reduzida à metade PM acusado de ameaçar moradores no Recreio tem pena reduzida 'Embaraço' e 'radical alteração' Em meio às decisões analisadas, há críticas dos desembargadores à mudança na legislação.

Em decisão publicada no Diário da Justiça do RJ em 22 de julho, quase um mês após a publicação do Decreto 9.847, o desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, da 7ª Câmara Criminal, escreveu que a norma "legitima a ação de grupos paramilitares, como milícias".

"Com efeito, o Decreto 9.785/19 que em sua gênese legitima a ação de grupos paramilitares, como milícias, pretendendo em sua motivação ideológica transferir ao cidadão de bem o ônus da defesa armada de sua segurança, legando à esfera privada um poder/dever do Estado, na verdade cria grande embaraço ao despenalizar condutas típicas com a alteração da regra administrativa de integração da norma penal em branco do Estatuto do Desarmamento", observou o desembargador.

Em outro trecho, o magistrado afirma que "a nova regra de inspiração punitivista acaba, por falta de habilidade de seu manejador, por trazer em seu resultado prático a abolição de condutas criminosas já assentadas de muito em nossa sociedade".

Na mesma decisão, o desembargador também pontua que o decreto "avança gravemente sobre as suas limitações constitucionais" e que "há radical alteração na definição legal do que é arma de uso permitido, em especial nas armas de preferência dos grupos paramilitares e do tráfico organizado, o que é muito grave".

Apontado como chefe de milícia consegue ter pena revista Acusado pela polícia de ser um dos chefes da milícia que domina Rio das Pedras, favela na Zona Oeste do Rio, o ex-policial militar André Elias Pereira de Oliveira, o Deco, conseguiu que a Justiça revisasse uma condenação contra ele por porte e posse ilegal de arma de fogo.

Em 2016, o ex-PM foi flagrado com uma pistola 9 milímetros carregada – armamento que passou a ser de uso permitido após decreto presidencial –, 12 cartuchos calibre 12 e uma pistola Taurus .380, também carregada. A denúncia contra o ex-PM dizia, ainda, que dentro do carro dele os policiais encontraram um colete à prova de balas e um bastão de madeira.

Em 1ª instância, Deco não foi condenado, mas, em abril de 2019, o Ministério Público do Rio (MPRJ) recorreu da decisão e conseguiu que a Terceira Câmara Criminal punisse Deco a 4 anos e 6 meses de prisão em regime semiaberto. O mandado de prisão preventiva contra Deco foi cumprido por agentes da 41ª DP (Tanque) em setembro de 2019.

No dia 11 de dezembro, ao julgar o pedido de revisão criminal feito pela defesa de Deco, o Quarto Grupo de Câmaras Criminais "desclassificou" a conduta atribuída a ele e reduziu a pena final para 3 anos e 4 meses de reclusão. A mudança na condenação foi considerada graças a um dos decretos presidenciais:

"[...] Recentemente, armas e munições de calibre 9mm Luger – 9X19mm deixaram de ser de uso restrito, passando a ser de uso permitido" escreveu a desembargadora Adriana Lopes Moutinho.

Relatora do caso, a magistrada determinou, então, que fosse substituída a prisão de Deco por duas penas restritivas de direitos e deu ordem para que fosse expedido alvará de soltura do ex-PM.

Anos antes, o ex-policial já havia sido preso por ser um dos alvos da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas (Draco) na Operação Rolling Stones. Segundo a polícia, Deco tem anotações criminais por homicídio e violência doméstica.

Pena de PM com 3,5 mil munições cai em 5 anos Em agosto de 2017, o PM Bruno Cesar da Silva Jesus e mais três homens foram parados por policiais rodoviários federais no quilômetro 318 da Rodovia Presidente Dutra, na altura de Itatiaia, no Sul do Rio de Janeiro. Dentro do carro, os agentes da PRF encontraram 3.450 munições calibre 9 milímetros.

O PM foi condenado em 1ª instância a 13 anos e 2 meses de prisão. No entanto, as alterações no Estatuto do Desarmamento possibilitaram que a pena aplicada a ele fosse recalculada e reduzida para 8 anos e 2 meses.

Ao justificar a mudança na punição, a desembargadora Katia Amaral Janguita, da 2ª Câmara Criminal, citou o decreto presidencial 9.847: "Assim, alguns armamentos e munições anteriormente classificados como de uso restrito, como na hipótese - calibre 9mm -, passaram a ser de uso permitido".

O voto, acompanhado pelos outros magistrados, determinou a exclusão do artigo 19 do Estatuto do Desarmamento da condenação do PM. O tópico impõe penas mais duras a quem seja acusado de tráfico de armas e munições de uso proibido ou restrito.

Como as munições 9 milímetros transportadas pelo PM passaram a ser consideradas permitidas, a aplicação da pena retroagiu para beneficiar o policial.

A denúncia do Ministério Público, reproduzida em trecho de acórdão da 2ª Câmara, afirma que a quantidade de balas encontradas "denota o caráter comercial destas, que seriam destinadas ao submundo do crime".

No dia da abordagem, o PM afirmou aos agentes da PRF que estava vindo de Cachoeira Paulista, em São Paulo, onde teria participado de um "retiro espiritual". Mas os policiais identificaram que o veículo tinha vindo, na verdade, de Guaíra, no Paraná.

Ao perceberem que a versão era falsa, os agentes decidiram revistar o carro e encontraram, atrás do carpete do porta-malas, as milhares de munições. Em interrogatório, o PM disse que elas seriam usadas em um estande de tiros.

Alvo de ação contra tráfico de armas tem pena alterada Condenado em 1ª instância a 9 anos e 6 meses de prisão em regime fechado, Roger dos Santos Macedo – que segundo a polícia integra uma quadrilha de traficantes de armas – também se beneficiou com a publicação dos decretos.

Roger foi preso em dezembro de 2018 durante uma operação conjunta das polícias Civil do Rio e Rodoviária Federal para combater o tráfico de armas. Além de carros que a polícia demonstrou serem clonados, foram encontradas na casa de Roger uma pistola de fabricação turca calibre 9 milímetros e munições de calibre 12.

As investigações indicaram que Roger integrava uma quadrilha que trazia para o Rio armas e munições do Mato Grosso do Sul e, antes disso, do Paraguai. Na época, as polícias indicaram o homem como o responsável por receber grandes carregamentos e também encomendar armas e munições de uso restrito.

Tendo como base um dos decretos, a defesa de Roger pediu à Quinta Câmara Criminal a reclassificação do crime de posse ilegal de arma de uso restrito para uso permitido. Os argumentos foram aceitos pelo desembargador Luciano Silva Barreto, que, em conjunto com os outros magistrados, decidiu pela revisão da pena.

Antes fixada em 3 anos, a condenação de Macedo passou para 1 ano de prisão pelo crime de posse ilegal de arma de uso permitido. Na sentença, também foi determinada a expedição de alvará de soltura para Roger.

Acusado de integrar milícia pode ter processo suspenso As mudanças estabelecidas pelos decretos presidenciais também podem suspender a ação penal contra o ex-PM Paulo José Lirio Salviano, alvo de operação em março do ano passado para combater uma milícia de Mesquita, na Baixada Fluminense. Na casa do ex-PM foram encontrados dois carregadores de pistola e 23 munições intactas.

Em setembro de 2019, a Primeira Câmara Criminal do TJ aceitou a apelação da defesa de Salviano para mudar a tipificação do crime, que passou a ser classificado como posse ilegal de "arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido".

Em seu voto, o desembargador Marcus Basilio ressaltou que a mudança no artigo do crime atribuído a Salviano permitiria, "em tese", a suspensão do processo. Isso, no entanto, só poderia ocorrer após manifestação do Ministério Público.

Antes das mudanças no Estatuto do Desarmamento, o ex-PM havia sido condenado a 3 anos e 8 meses de reclusão, e permaneceria preso enquanto a sentença não transitasse em julgado. A decisão em 2ª instância, porém, definiu que o réu passaria a responder a um crime que prevê pena mínima de 1 ano de detenção, o que pode levar à suspensão do processo.

Rogerinho do Zinco tem pena reduzida à metade Condenado a 28 anos e 3 meses por sequestro e outros crimes, Rogério Chaves de Castro Lima, o Rogerinho do Zinco (irmão do traficante Ricardo Chaves de Castro Lima, o Fu da Mineira) também foi favorecido com os decretos presidenciais.

Em processo mais recente, Rogério foi condenado em 1ª instância a 4 anos e 8 meses de prisão em regime fechado por porte ilegal de arma de uso restrito. A defesa do criminoso apresentou recurso ao TJ e conseguiu a redução da pena definitiva para 2 anos e 4 meses

Em acórdão da Primeira Câmara Criminal, durante sessão em outubro de 2019, os magistrados entenderam ser preciso reformar a sentença aplicada a ele, considerando que as alterações no Estatuto do Desarmamento incluíram armas de 9 milímetros na lista de calibres permitidos.

No voto, a desembargadora Maria Sandra Kayat reproduz trecho da denúncia do MP contra o acusado afirmando que Rogerinho estava na favela Barreira, em Mesquita, na Baixada Fluminense, quando foi preso por PMs.

A denúncia afirma que os policiais foram atacados a tiros e revidaram. Segundo relato dos PMs, houve correria e um grupo de criminosos dispersou, restando só Rogerinho no local. Antes de ser abordado, os policiais disseram que ele se desfez de uma pistola.

Ao ser interrogado em setembro de 2015, Rogerinho do Zinco negou as acusações alegando que um rádio e a pistola foram "colocados na conta dele". Ele afirmou que não estava armado e que sequer foi feita perícia para checar se havia alguma impressão digital dele na arma. Rogerinho contou ter ido à Barreira visitar uma amiga, versão que foi recusada pela Justiça.

PM acusado de ameaçar moradores no Recreio tem pena reduzida Condenado duas vezes por porte ilegal de arma de fogo, o PM Jorge Rodrigo de Oliveira Vianna conseguiu ter reduzida a pena de prisão em regime semiaberto de 3 anos e 8 meses, para 2 anos em regime aberto.

A decisão da Sétima Câmara Criminal narra que Vianna foi condenado após ser preso em flagrante por outros PMs e um policial civil com uma pistola ponto 40 e dez cartuchos com balas de mesmo calibre. O caso aconteceu em julho de 2015 no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste.

Segundo o processo, o policial foi a um terreno na Avenida Célia Ribeiro da Silva Mendes "com o intuito de constranger e amedrontar pessoas que lá estivessem". Embora fosse membro das forças de segurança, a arma encontrada com o policial não estava registrada no nome dele, o que é ilegal.

No acórdão, os magistrados foram unânimes em aceitar o recurso apresentado pela defesa do PM, que citava um dos decretos. Ao estabelecer que o crime cometido pelo policial seria porte ilegal de arma de uso permitido, os magistrados concordaram em reduzir a pena para 2 anos. Também ficou definindo que o PM cumpriria a punição em regime aberto, com outras duas penas restritivas de direito.


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